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Joker

Joker

Confesso o meu total desinteresse quando tive notícias da intenção de Todd Philips filmar Joaquin Phoenix como Joker. Não por causa do envolvimento de Phoenix; na verdade, o meu primeiro pensamento questionava o que teria levado o extraordinário actor a interessar-se por um vilão da banda-desenhada, ainda para mais num filme órfão do seu arqui-inimigo, se bem que consigo entender o apelo de um actor encarnar tão suculenta personagem. A minha hesitação tinha origem no homem atrás das câmaras, responsável por inúmeros capítulos de mediocridade humorística. Nem sequer o Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano, em antecipação à data de estreia mundial, me fez vacilar — ainda colocava o filme na prateleira dos filmes de super-heróis, género que não tem contribuído sobremaneira para a minha cinefilia.  O que faltava perceber foi desvendado em parte pelos trailers: a origem da personagem é um mero ponto de partida para um filme com ADN noutras paragens, nomeadamente o cinema de Martin Scorcese, do qual O Rei da Comédia é referência imediatamente óbvia, acrescentando um tom de mal-estar social que remete para Taxi Driver, títulos incontornáveis que marcaram a recta final da Nova Hollywood. A reforçar esta abordagem, aparece no elenco nada mais que Robert De Niro, figura central desses dois filmes. De repente, Joker parecia fazer sentido, muito embora sobrasse a ansiedade de que filme seria este que faz de um incorrigível vilão o protagonista.

Gotham City, assolada por desemprego e crime, está à beira do colapso. Arthur Fleck trabalha como um palhaço e vive com a mãe, Penny. Uma condição neurológica faz com que Arthur se ria em situações inapropriadas, e requer uma visita regular ao serviço de assistência social para obter medicação. Assombrado e coibindo constantemente um lado negro latente, sonha em ser um comediante de stand-up, no entanto não parece compreender o que faz os outros rir. Sonha em ir ao programa televisivo do famoso comediante Murray Franklin, com quem fantasia uma relação paternal. Incompreendido e vitima de aleatórios ataques violentos, comete um crime, no que começa por ser um acto de auto-defesa e acaba por se tornar numa demonstração gratuita e zangada da sua personalidade reprimida finalmente libertada.

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Arthur Fleck é uma criação gigante de Joaquin Phoenix. Depois de tudo que já pudemos assistir do actor, é como se nos quisesse provar que ainda temos muito para ver. É esta entrega que carrega Joker às costas, e é quando acompanhamos o ponto de vista não fiável de Arthur que o filme se eleva. Será que lhe deram simplesmente uma arma, ou foi ele que pediu para a comprar? E qual a verdadeira natureza da sua relação com a vizinha Sophie, uma mãe solteira por quem se mostra visivelmente atraído? Um dos elementos mais eficientes desta composição é a reação a situações de medo ou embaraço com gargalhadas, a expressão no espectro oposto dos seus reais sentimentos. Uma reação que tenta reprimir e anular de forma verdadeiramente constrangedora e desconcertante. Desde miúdo que a mãe lhe dizia para sorrir — «put on a happy face», no original —, no entanto o sorriso sempre funcionou como uma máscara que oculta a sua verdadeira expressão. Como diz à assistente social, Arthur não tem um único pensamento positivo. Mais tarde, confrontado com segredos desvendados do passado, finalmente a revelação: «Pensava que a minha vida era uma tragédia, afinal é uma comédia.» É neste momento de viragem que a gargalhada deixa de ser uma fraqueza e é transformada numa arma.

Todd Philips e o seu parceiro de escrita, Scott Silver, remetem a acção de forma subtil para o princípio da década de oitenta — começando no símbolo da Warner Bros. da década de setenta utilizado na abertura do filme e continuando nas referências à exibição num cinema de Blow Out – Explosão, de Brian De Palma, e uma breve aparição de um cartaz de Cidade em Pânico, de Michael Wadleigh —, e Gotham é encenada de forma retro, remetendo para a Nova Iorque suja e perigosa que Travis Bickle atravessava de forma predadora no seu táxi. Como naquele filme de Scorcese, somos cúmplices de Arthur na sua limitada e claustrofóbica visão de mundo. Assim, ao invés de nos ser mostrada a sujidade das ruas, somos informados da mesma através de blocos noticiosos. É todo um universo que se constrói na periferia da acção. E é aqui que se revelam os primeiros problemas narrativos: ao tecer uma trama que tem de combinar o estudo de uma personagem originada na banda-desenhada, em plena crise causada por desequilíbrios mentais e uma boa dose de alienação social, é estabelecida uma ténue relação entre o mundo interior da personagem e as causas externas dos seus problemas. A dupla guionista não faz o trabalho de estabelecer o fosso entre ricos e pobres no texto do filme, nem monta sequer um argumento convincente que justifique a responsabilidade social no desfazer mental de Arthur. O seu crime, entretanto, é aclamado e transformado em bandeira de contestação social. Quando revela de forma assassina o alter ego Joker em directo na televisão, depois de humilhado no programa por Murray Franklin — Robert De Niro numa extensão de Robert Pupkin, a sua personagem de O Rei da Comédia — a potencial desconstrução da televisão como fábrica de heróis e vilões já se perdeu, bem como a crítica classista. Joker já era um herói antes de aparecer na televisão, e sem nada ter feito para isso. No entanto, no meio dos distúrbios que irrompem nas ruas da cidade, provocados pelas suas ações, Joker é a cara do descontentamento, e a inspiração para a violência, incluindo incêndios, pilhagens e assassinatos aleatórios de ricos, pelo simples motivo de o serem. O que poderia ser um vibrante conto de caução é colocado em causa por uma encenação que parece celebrar o seu anti-herói. Esta abordagem é, no mínimo, perturbante. Joker é desequilibrado, perigoso e assassino. Esta não é uma história de redenção, mas sim de origem de um vilão, e fica por perceber exactamente qual a intenção de Phillips. Como Joker diz a Franklin, parafraseando: «Não acredito em nada. Não ligo a política.» E Todd Phillips, em que acreditará?

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Joker é um filme cínico e opressivo com uma visão do mundo que roça o niilismo. Muito por «culpa», também, da extraordinária banda sonora original da autoria da islandesa Hildur Guðnadóttir dominada por espectrais violoncelos e parecendo exteriorizar o caos interno e a inevitável transformação de Arthur Fleck. Ao convocar a filmografia Scorcese, Phillips vampiriza a memória dos seus filmes como atalho para um qualquer comentário social e político aos tempos que vivemos — não só o realizador está a contar com a nossa bagagem política ao entrar na sala de cinema como resta perceber que comentário é esse. É um cinema referencial à procura de identidade própria, não se escusando a invocar num plano de câmara a memória da célebre encarnação da personagem por Heath Ledger, quando Joker é transportado no banco traseiro de um carro da polícia. Embora o caderno de encargos das sementes narrativas para futuros filmes seja cumprido, Joaquin Phoenix entrega-se, como se o amanhã não existisse, de raquítico corpo e gigante alma no retrato desta personagem atormentada. É uma interpretação assombrada e assombrosa. É pena o nebuloso e incendiário filme que carrega às costas.

O episódio do podcast Segundo Take dedicado a Joker pode ser ouvido aqui.

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