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Tudo Pelo Vosso Bem

Tudo Pelo Vosso Bem

Tudo Pelo Vosso Bem é o título português de I Care a Lot, o novo filme de J Blakeson, escritor e realizador britânico responsável em 2009 pelo thriller minimalista The Disappearance of Alice Creed. Rosamund Pike é Marla Grayson que, segundo as suas próprias palavras na narração em off com que o filme arranca, é uma leoa, uma predadora num mundo que se divide binariamente, segundo a sua convicção, entre predadores e presas. Marla é tutora legal nomeada pelos tribunais para tomar conta de idosos que não estão em condições de tratarem de si próprios. O problema é que esta actividade serve para que Marla, ajudada pelo sistema legal, despache os velhotes para lares de “vida assistida” — como o politicamente correcto agora decidiu chamar-lhes —, onde ficam praticamente reféns, e tome posse das suas casas e dos seus pertences, leiloando-os para meter o dinheiro ao bolso. Isto com a ajuda de uma rede bem oleada de colaboradores, desde a médica que falsifica os relatórios sobre o estado de saúde dos pacientes até ao director do lar que facilita estadias e executa todos os pedidos da tutora para impedir o contacto das vítimas deste esquema com a família no mundo exterior. Auxiliada pela parceira e amante Fran, a actriz Eiza González, decidem visar a rica e solitária Jennifer Peterson, a veterana Dianne Wiest, desconhecendo que na verdade esta guarda segredos bem escondidos e conexões que lhes poderão complicar a vida. O que acontece mesmo quando um volátil e temido criminoso, encarnado por Peter Dinklage, entra em acção para tentar retirar Jennifer do lar onde foi internada contra a sua vontade.

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Não obstante a narração redundante, numa tentativa de emular o estilo de Martin Scorcese em O Lobo de Wall Street, por exemplo, que explicita temáticas e desde logo começa a cimentar uma tentativa de defesa moral de Marla Grayson, o arranque de Tudo Pelo Vosso Bem é promissor e revela imediatamente uma protagonista repreensível e sem escrúpulos que usa o sistema legal para rapinar os bens de idosos indefesos, arrancando-os das suas casas para os colocar num lar sem acesso à família. Numa curta, mas decisiva, contribuição de Macon Blair, como o filho de uma idosa vítima da dissimulada tutora, são estabelecidos vários elementos: as aparições em tribunal são uma elaborada charada, com Marla a desempenhar impecavelmente o papel de uma caridosa humanitária; e tudo o que Marla faz é dentro da legalidade de um sistema que não consegue ver para lá da encenação. Rosamund Pike é maquiavélica — quase de forma maquinal, — numa interpretação que parece o prolongamento de Amy Dunne, de Em Parte Incerta (Gone Girl, David Fincher, 2014), toda ela feita de micro-expressões faciais que revelam a verdadeira natureza por detrás dos falsos sorrisos. Esta impressionante prestação a roçar o caricatural assenta que nem uma luva no tom de comédia negra dos momentos iniciais do filme. Exemplo disto mesmo é também a fantástica prestação de Chris Messina como um advogado vistoso e questionável que tenta negociar com Marla a libertação de Jennifer. A conversa entre os dois é um momento delicioso de entendidos e sub-entendidos com ameaças veladas pelo meio que coloca à prova a determinação e ambição da protagonista.

O problema é a falta de definição de Tudo Pelo Vosso Bem. Será uma sátira ao sonho americano? Ou uma crítica ao capitalismo desbragado? Ou ainda um olhar sobre a desigualdade na sociedade norte-americana? Pelo meio, encontram-se ainda salutares beliscões a estereótipos, nomeadamente na visão da condição feminina, na forma como Marla torna numa força o que é percepcionado pelos outros como uma fraqueza, e na normalização da relação homossexual entre Marla e Fran. Mas quando Peter Dinklage entra em acção, com uma prestação divertidamente exagerada, o tantas vezes visto gangster volátil e ameaçador que faz todos à sua volta tremerem de medo, a narrativa resvala imediatamente para o reino da fantasia cinéfila, desancorando-se de qualquer verosimilhança e ressonância com a realidade que tinha tido até então. Porque as cenas em que Dianne Wiest interpreta a confusão de Jennifer ao ser tomada de rompante por uma ordem do tribunal e se vê levada da sua casa para um lar sem acesso ao telemóvel são verdadeiros momentos de terror social. Quando a retribuição parece tomar a forma de um diminuto mafioso russo, derrapámos irremediavelmente para o domínio da farsa com a forma de um thriller de acção. Este choque de tons não parece propositado — na verdade, deixa mais a ideia de uma certa falta de controlo no processo de escrita.

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Muitas das apressadas críticas ao filme apontam-lhe a ausência de personagens com que nos possamos identificar, maleita moderna da arte de ver filmes. Desde quando é que precisamos de nos identificar com as personagens para um filme ser bom? Há maravilhosos estudos de personagens condenáveis — vejam-se os já aqui referidos O Lobo de Wall Street e Em Parte Incerta como dois exemplos recentes. O maior pecado de Tudo Pelo Vosso Bem traz-nos de volta à indefinição das suas temáticas e das suas convicções. Um autor que nos propõe um confronto entre personagens más, de um lado, e ruins, do outro, sem qualquer perspectiva de resolução moral satisfatória, coloca-se em maus lençóis quando, no final, acaba com uma narrativa esvaziada de relevância. E, deixem-me adiantar-vos que, depois do filme concluído, implicar-nos na amoralidade das suas personagens, não é o caminho correcto para compensar esse vazio. Nem sequer um vingativo acto de Deus pela mão de uma personagem esquecida no primeiro acto.

Tudo Pelo Vosso Bem não é totalmente descartável. Aplaude-se o negrume espirituoso da construção da sua história e a coragem de ter no centro personagens sem qualquer potencial de redenção, com Rosamund Pike, com uma prestação a régua e esquadro, a destacar-se como uma protagonista detestável. É pena que o tom resvale a dois terços da sua duração e que a reta final não cumpra as expectativas do seu promissor arranque.

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