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A saga Gritos de Wes Craven

A saga Gritos de Wes Craven

Para falarmos de Gritos temos de recuar uns anos, até 1978, mais precisamente, quando John Carpenter deu início de forma involuntária com Halloween, estreado entre nós como O Regresso do Mal, à consolidação do sub-género do terror que viria a ficar conhecido como slasher. As grandes produtoras de Hollywood foram imediatamente atrás dos cifrões do sucesso sem precedentes da brilhante produção de baixos custos e altíssimos rendimentos que viu nascer Michael Myers. Sexta-Feira 13, realizado por Sean S. Cunningham dois anos depois, foi o primeiro sucedâneo confeccionado para as grandes massas que deu origem a um infindável número de sequelas que viram nascer Jason Vorhees, um de três assassinos em série popularizados nos anos oitenta — se é possível conceber tal conceito, os anos oitenta transformaram cruéis assassinos em série em autênticos heróis e ícones da cultura popular. O terceiro vértice deste triângulo de figuras que marcaram o zeitgeist desta década, Freddy Krueger, foi, também ele, uma criação “acidental”: Wes Craven não tinha previsto o sucesso de O Pesadelo em Elm Street, um filme muito pessoal lançado em 1984, transformado em franchise pela New Line Cinema na peugada da popularidade crescente do género. É legítimo dizer-se que o realismo visceral da década de setenta deu lugar a fantasias de estética devedora da MTV em que o terror mainstream capitalizou com a exploração de (aparentemente) imortais assassinos psicopatas e pedófilos que assombravam os sonhos e as esperanças dos adolescentes incautos, deleitando-se com o vislumbre dos seus interiores e com o carmesim do sangue que jorrou abundantemente dos seus corpos mutilados. 

Apesar de Michael, Jason e Freddy arrastarem as suas carcaças (mais ou menos) putrefactas pela década de noventa adentro, quando Wes Craven finalmente regressou a Elm Street em 1994, aproveitou a oportunidade para comentar sobre o estado da indústria cinematográfica, nomeadamente do género que nunca conseguiu sacudir com sucesso, e da sua relação com os mitos que criara. O Novo Pesadelo de Freddy Krueger foi um brilhante e incompreendido exercício de reflexão “meta” que levantou o espelho não só aos criadores dos filmes de terror (na sequência do sucesso do slasher), como aos fãs que idolatraram estes monstros assustadores, retirando-lhes ameaça e, mais importante ainda, relevância narrativa. Esta, no entanto, não foi a última palavra de Craven sobre o assunto. Numa tempestade perfeita de intenções, juntou-se dois anos mais tarde ao argumentista Kevin Williamson e à recém-criada Dimension Films, uma subsidiária dos irmãos Weinstein para cinema de terror fora da alçada da prestigiada Miramax, para a criação de Gritos (Scream, no original). Sob a aparência de um típico filme slasher dos anos oitenta, com elenco jovem alinhado para a carnificina, Williamson ofereceu finalmente um filme de terror consciente de si próprio, ou seja, um filme de terror num universo no qual filmes de terror existem e os adolescentes protagonistas comentavam a sua própria representação no grande-ecrã.

Com o aproximar do aniversário do assassinato da mãe, Sidney Prescott (Neve Campbell) vê-se ameaçada por uma figura mascarada que começa a assassinar adolescentes. Com a ajuda do namorado Billy (Skeet Ulrich) e dos amigos Stu (Matthew Lillard), Tatum (Rose McGowan), Dewey (David Arquette), e Randy (Jamie Kennedy), Sidney não só encara a ameaça de morte como os holofotes da imprensa com a chegada à cidade da famosa repórter Gale Weathers (Courteney Cox). Esta singela sinopse dava o mote para um filme que deixava para trás os batidos lugares-comuns do género — se nem sempre evitados, pelo menos expostos através do vasto conhecimento de filmes de terror de Randy. Ao reconhecer o legado da cultura popular em que o próprio se inseria, Gritos pôde ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo. Ou seja, pôde comentar sobre os lugares-comuns do género ao mesmo tempo que os usava eficazmente. Exemplo disso mesmo é o conceito da final girl, a supremacia feminina sobre o assaltante, com a vítima a tornar-se na heroína e a sobreviver no final. Na verdade, pela caneta de Williamson, Gritos está recheado de fortes e inteligentes personagens femininas, a começar na protagonista encarnada por Neve Campbell. Ao elenco recheado de caras conhecidas — e que bela manobra de marketing colocar Drew Barrymore logo na cena de abertura que definia não só o tom auto-referencial do filme como a violência do mesmo — juntava-se uma banda sonora com música popular à data, da qual se destaca aquela que se tornaria o hino deste e dos filmes que lhe seguiram: Red Right Hand, por Nick Cave and the Bad Seeds.

Na sequência do sucesso inesperado, a mesma equipa voltou imediatamente no ano seguinte para uma sequela. Além de estender as suas reflexões espirituosas à mecânica das sequelas, Gritos 2 sublinha a sátira à indústria cinematográfica, às suas muletas narrativas e à forma como se relaciona com – e (des)responsabiliza dos – conteúdos temáticos que produzem para entretenimento. Este capítulo vem também marcar o início de uma nova tendência, fruto das tecnologias emergentes: a disponibilização e instantânea disseminação do guião na internet, obrigando a alterações narrativas em plena produção para despistar os fãs mais ansiosos. 

Entretanto, com Kevin Williamson ocupado com outros projectos, Ehren Kruger tomou as responsabilidades de escrita para o fecho da trilogia em 2000: Gritos 3. Com segurança redobrada e finais alternativos filmados para baralhar os mais curiosos, este é um fechar de ciclo – inaugurado, na verdade, com O Novo Pesadelo de Freddy Krueger. O subtexto torna-se agora texto e o alvo são os abusos de poder em Hollywood e a capacidade da máquina dos sonhos para corromper vítimas inocentes. Apesar de menos bem recebido, terá sido este, na verdade, um título visionário? Muitos acreditam que não, mas contem-me como um orgulhoso defensor deste capítulo, apesar dos seus deméritos.

Nos anos que se seguiram a Gritos 3, o sucedâneo Destino Final, realizado por James Wong, em 2000, deu origem a incontáveis sequelas; Hostel (de Eli Roth, 2005) e Saw - Enigma Mortal (James Wan, 2004) deram o pontapé de saída ao torture porn, com este último a dar origem a incontáveis sequelas; por falar em infindáveis sequelas, Actividade Paranormal, êxito-surpresa de Oren Peli em 2007, roubou a coroa do found footage a O Projecto Blair Witch e deu origem a uma saga que ainda hoje dá sinais de vida. Além disso, nenhuma das três figuras de proa do slasher, entretanto mortas e enterradas no virar do milénio, pôde dormir o seu sono eterno descansado: todos eles foram reanimados para realidades mais violentas e anacrónicas em remakes pouco memoráveis: entre 2007 e 2010 tivemos Halloween, pela mão de Rob Zombie, Sexta-Feira 13, por Marcus Nispel, e Pesadelo em Elm Street uma realização de Samuel Bayer. Em resposta, onze anos depois do terceiro capítulo, Craven e Williamson voltaram a reunir-se para, estragando as contas da redonda trilogia original, voltar a comentar com Gritos 4 sobre o seu próprio legado, a evolução do género de terror na década que o antecedeu com intermináveis sequelas e remakes –, e a relação dos fãs com este tipo de filmes violentos. Tudo isto sem descurar a crescente importância dos telemóveis, da internet e da quimera pela popularidade instantânea online. Não obstante o regresso ao modelo já ultrapassado, Gritos provou mais uma vez, inesperadamente, deixem-me acrescentar, estar totalmente sintonizado com o zeitgeist do momento. Wes Craven, que viria a deixar-nos em 2015 aos 76 anos de idade, deixava-nos como obra final um quarto capítulo relevante e actual, injectando nova vida numa saga que se pensava arrumada.

Análise a Gritos (2022), realizado por Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett, aqui.

Licorice Pizza

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Gritos

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