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A Noite Passada em Soho

A Noite Passada em Soho

Edgar Wright não é estranho ao cinema de género. Desde os tempos de Spaced, a brilhante série televisiva em que colaborou com Simon Pegg, que o realizador britânico abrilhanta com a sua sensibilidade pop histórias que piscam desavergonhadamente o olho aos cinéfilos mais conhecedores, bem como às suas paixões de nicho. As suas colaborações com Pegg no grande-ecrã — Shaun of the Dead, Hot Fuzz e The World’s End, trio de filmes entretanto apelidado de Trilogia do Cornetto — estenderam a linguagem conhecedora e referencial trazida da televisão nos seus géneros específicos. Respectivamente, o terror do apocalipse zombie, o exagero da acção policial e, novamente, o fim do mundo, desta vez na sequência de uma invasão alienígena. Tudo isto com um humor de fino recorte e uma linguagem visual de grande aprumo e controlo que revelaram um realizador deliberado e extremamente criativo, com uma estética única e uma refinada utilização da música na construção das suas bandas sonoras. Os seus projectos em Hollywood, desfeita a parceria com Simon Pegg, tiveram destinos na bilheteira diametralmente opostos à qualidade de cada título, com o delírio visual de Scott Pilgrim Contra o Mundo, generoso filme que recompensa repetidas visualizações, escrito em colaboração com Michael Bacall, a não recuperar o orçamento, enquanto que Baby Driver, filme com uma premissa que se esgota rapidamente no circular guião, escrito finalmente a solo por Edgar Wright, a ser uma sensação junto do público, com impressionante retorno financeiro. Se é praticamente unânime que Edgar Wright é um virtuoso métier da imagem e do som, Baby Driver deixou a dúvida em relação às suas capacidades no que toca à escrita.

Quando tivemos oportunidade de ver as primeiras imagens de A Noite Passada em Soho, revelaram-se vários pontos de interesse. Depois de Don’t, o falso trailer inserido no projecto Grindhouse, de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, Wright regressa a uma estética retro com promessa de terror psicológico e sobrenatural. E, pela primeira vez, um filme seu tem como protagonista uma dupla feminina encarnada por duas das mais interessantes actrizes da nova geração: a neozelandesa Thomasin McKenzie, a revelar-se discreta mas seguramente em títulos mais independentes, e a americana de origem britânica Anya Taylor-Joy, revelada há uns anos em A Bruxa, de Robert Eggers, aqui no seguimento do mega-sucesso alcançado na série televisiva Gambito de Dama. A Noite Passada em Soho conta ainda com a última interpretação da lenda Diana Rigg, entretanto falecida antes da estreia do filme devido aos atrasos provocados pela pandemia, e com a sempre estimável prestação do veterano Terence Stamp. Talvez dada a perspectiva feminina, Wright convidou Krysty Wilson-Cairns para colaborar na escrita do argumento, que terá contribuído com a sua própria experiência pessoal a trabalhar em bares no titular bairro londrino do Soho, do qual Wright fez questão de capturar a essência para contar esta história.

"Ellie" Turner é uma jovem aspirante a estilista de moda. Obcecada pela música e pela moda dos anos sessenta, Ellie vê ocasionalmente a sua falecida mãe no reflexo de espelhos. Admitida na Faculdade de Moda de Londres, viaja da rural Cornualha para a urbana capital inglesa. Deslocada no seio dos colegas estudantes, muda-se da residência universitária para um quarto arrendado pela senhora Collins. Nessa noite, através do que aparenta ser um sonho lúcido, é transportada para a década da sua eleição, e para o Café de Paris, onde observa a deslumbrante aspirante a cantora Sandie no momento em que esta conhece Jack, um charmoso manager que lhe promete as estrelas. Confrontada com a dura realidade da faculdade durante o dia, Ellie mostra-se ansiosa por regressar ao quarto e à realidade sonhada durante a noite. No entanto, rapidamente se confronta com a dura realidade que se esconde por detrás das aparências, conforme Jack se revela abusivo e com intenções menos dignas para com Sandie. Aos poucos, a fronteira entre a realidade e o sonho parece esbater-se, conforme Ellie começa a ser assombrada pelo espectro do passado criminoso do qual é testemunha, e se confronta com a possibilidade de tudo ser fruto da sua instabilidade mental.

A Noite Passada em Soho tem sido mencionado na mesma frase que o giallo, sub-género do cinema de terror italiano. Para tal, muito ajudará a cativante recriação de época, remetendo-o para esse sub-género não só os elementos temáticos, envolvendo assassinatos com objectos cortantes, como também a estética do período. As sequências de sonho de Ellie constituem alguns dos momentos mais deslumbrantes do filme, com Edgar Wright surpreendentemente contido nos floreados visuais a construir sequências oníricas de verdadeiro espanto e proficiência técnica, incluindo uma dança incrivelmente executada em que Ellie e Sandie vão alternando como o par de Jack. É inegável a elegância da utilização nestes momentos dos espelhos como referência visual para o jogo de ilusões e para a dualidade que se estabelece entre as duas personagens e entre as épocas retratadas, com o presente a reflectir e a repetir as duras realidades do passado. Para esta atmosfera contribui também novamente uma banda sonora de precisão milimétrica que terá influenciado a espaços as construções narrativas, e que inclui nomes como Dusty Springfield, The Kinks, The Who ou o fenómeno da Eurovisão Sandie Shaw. A narrativa é construída pacientemente, contrariando o défice de atenção de muitos filmes apressados da actualidade, e, quando está montado o cenário para um festival de nostalgia, o par argumentista subverte as expectativas ao revelar um lado negro e perigoso da mesma. Numa entrevista do ano passado à Los Angeles Times, Edgar Wright afirmou que considerava “aterrador o perigo de se ser excessivamente nostálgico acerca de décadas anteriores” e que “este filme é, de certa forma, sobre a romantização do passado e do porquê disso ser errado”. A Noite Passada em Soho apresenta-se assim, nos antípodas de Era Uma Vez… Em Hollywood, de Quentin Tarantino, amigo pessoal de Wright. Ellie não só é assombrada em Soho pelos fantasmas do passado do bairro como — e porque há coisas que nunca mudam — por ameaças bem reais no presente, desde o aparentemente simpático taxista que rapidamente se insinua às viperinas colegas da faculdade de moda.

No entanto, apesar de uma premissa intrigante e uma execução técnica irrepreensível, é no argumento de Wright que residem as fraquezas de A Noite Passada em Soho, mesmo que este tenha contado com uma parceira de escrita. O tom do filme nunca se define realmente, com os elementos de terror a não serem verdadeiramente assustadores, e Wright carrega a narrativa de demasiados elementos, aparentando por vezes uma falta de rumo e foco, ficando esta assim a meio caminho entre um mistério criminal que ultrapassa barreiras temporais, uma exploração de uma doença mental (ou possivelmente, de uma capacidade psíquica fora do normal) e uma clássica história de fantasmas. As personagens são definidas a traços grossos, e se Anya Taylor-Joy deslumbra como a misteriosa e sedutora Sandie, a excelente Thomasin McKenzie, com o mais exigente papel de Ellie, é no entanto traída pela escrita que a remete demasiadas e repetidas vezes para o estado de instabilidade e confusão mental, não deixando a actriz tirar proveito das subtilezas demonstradas noutros papéis. E o que dizer das personagens secundárias como John, o colega inexplicavelmente devoto a Ellie, puro mecanismo em função da engrenagem narrativa? Chegados à revelação final, sentimos-nos traídos ao revisitarmos um momento crucial que tínhamos visto anteriormente, momento esse em que o texto do filme nos mentiu descaradamente. Não só isto rouba força ao desfecho, como a estranha flutuação entre a vitimização e a culpabilização de certas personagens reforçam a falta de clareza no âmago da história que nos está a ser contada.

É-me difícil não ser generoso com Edgar Wright, dados os momentos de felicidade pura que já nos proporcionou no passado, mas a realidade é que A Noite Passada em Soho parece um passo em falso, agravado pela tentativa genuína de estender horizontes e de fazer algo diferente. Idealmente, Wright reunir-se-ia novamente com Pegg para mais uma desconstrução de um género cinematográfico. Se tal não for possível, espero que Wright procure bons argumentos escritos por terceiros, porque acredito piamente que a sua obra-prima ainda está por vir.

Gritos

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Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun

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