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Uma Vida Escondida

Uma Vida Escondida

Tempos houveram em que um novo filme de Terrence Malick era um acontecimento. Especialmente no regresso à realização em 1998 com A Barreira Invisível, vinte anos depois do título anterior. Depois da obra-prima A Árvore da Vida, em 2011, a sua produção ficou mais prolífica, entrando numa fase mais abstracta que alienou lentamente, mas consistentemente, fãs e críticos. Neste novo ciclo (três filmes de ficção, mais um documentário, entre 2012 e 2017), Malick abdicou definitivamente de qualquer conceito convencional de narrativa optando por uma abordagem de filmagem sem guião, lançando os seus actores em instantes de improvisação, capturando interações e sensações que mais tarde edita em elipses temporais e espaciais num puzzle de momentos e fragmentos impressionistas que devem mais à pintura e à poesia que a qualquer conceito tradicional de cinema. É por isso que se fala em Uma Vida Escondida como um regresso. Não só a uma forma reconhecível de narrativa, como a uma recriação de um acontecimento histórico como moldura para as suas explorações temáticas.

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Originalmente anunciado como Radegund, título mais tarde alterado por inspiração de uma passagem no livro Middlemarch, de George Eliot, Uma Vida Escondida conta a história de Franz Jägerstätter, um agricultor austríaco, e católico devoto, que se recusou a jurar fidelidade a Adolph Hitler e a lutar pelos nazis na Segunda Guerra Mundial. Transcendental e poético, volta a confrontar o profano e o sagrado, a explorar a natureza e a religião, a questionar a humanidade e, nunca antes tão frontalmente, a réstia de humanismo, integridade e convicção passíveis de serem encontradas no indivíduo perante o peso incomensurável do colectivo em confronto com os seus valores. Franz, interpretado por August Diehl, sente um profundo dever moral, e o seu acto pacífico e passivo de rebelião abala o sistema montado para anular o indivíduo e usá-lo como ferramenta dos desígnios abjectos do regime. Se nas cenas iniciais a vila em que Franz e Franziska, a actriz Valerie Pachner, parece verdadeiramente idílica, perante este desalinhamento vem-se a revelar a verdadeira natureza de quem abraça a retórica da intolerância, seja por subjugação e conformismo ou por finalmente se encontrar destapado do manto da moral. Vizinhos e amigos julgam, cospem, insultam e roubam, indo muito além das fronteiras cinzentas desenhadas pelo medo e pela cobardia. Fascinante e insular, August Diehl oferece uma serenidade inusitada a Franz, em perceptível conflito interno, porém optando amiúde pelo silêncio, sendo normalmente os outros à sua volta quem têm a pretensão de lhe dizer o que pensar e como agir.

A câmara de Malick desafia os limites da intimidade, habitando os espaços dos corpos, por vezes lutando fisicamente com eles pelo território que ocupam, numa ânsia de capturar a verdade que se encontra num beijo, num abraço, num olhar e nos inúmeros silêncios que permeiam o ruído da vivência diária. A sua edição fragmentada e embalatória parece por vezes residir nas franjas das cenas, encontrando a sua verdade nos limites das acções e dos discursos. Se há um permanente questionar espiritual das personagens, um diálogo surdo numa constante, porém abalável, mostra de fé, através das muito “malickianas” narrações em off, também há a percepção que o Amor (assim mesmo, com maiúscula) é a expressão maior da espiritualidade desejada. Desde o momento em que Franz e Franziska são separados por forças maiores (mais uma vez, o indivíduo prisioneiro da sua circunstância), Malick, que nos tinha mostrado a fortaleza dos seus laços e da sua intimidade, faz-nos testemunhas dali em diante dos seus calvários. Além da perda da liberdade de Franz (liberdade física, pois a sua postura como objector de consciência é o reflexo tanto da sua integridade como da sua liberdade espiritual), seguimos as humilhações de quem ficou para trás, bem como do sacrifício de Franziska e da sua irmã para trabalhar a terra sem a ajuda de Franz. É no meio deste negrume que por vezes se vislumbram actos de bondade como raios de luz a rasgar espessas nuvens. Inspirados também são os momentos epistolares em que os amantes separados trocam prosaicas mensagens de esperança e positivismo, evitando o recurso à tragédia ou ao fatalismo. Inesperado é o horror insidioso e desconfortável que se instala na recta final do filme na recriação dos acontecimentos verídicos que dá voz a uma vida que, num momento de escuridão, se tentou rasurar.

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Apesar de filmado em 2016, e de um trabalho de pós-produção de cerca de três anos, Uma Vida Escondida revela-se atempado e relevante à data de estreia, dialogando com ansiedades e preocupações tão actuais como pertinentes. Através de Franziska, Malick chega a quebrar a quarta-parede e a falar connosco olhos-nos-olhos, dirigindo-nos apelos desesperados e esperançados. Além disso, o uso de imagens de arquivo reforça a origem do mal que empurra Franz para o seu destino, mas também sublinham a tendência da História para se repetir. A memória é curta, por isso nunca é demais o confronto com o rosto e a evidência gritante de desumanidade como acto de recordação e prevenção.

Perante a ausência do habitual Emmanuel Lubezki, Malick promoveu o operador de câmara Jörg Widmer a director de fotografia. O resultado são momentos de rara beleza que colocam em cena os protagonistas com deslumbrantes paisagens alpinas como pano de fundo, sem com isto minorar a verosimilhança da dureza do trabalho campestre a que os habitantes de St. Radegund estavam sujeitos. Se a procura do sagrado neste contexto rural invoca a espaços a aspereza de Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky, as composições de James Newton Howard complementam a ponte emocional com o espectador, em mais um trabalho de exceção de um compositor contemporâneo sob a batuta de Malick. Independentemente do saldo pessoal destas colaborações, o realizador inspirou no passado alguns dos melhores trabalhos de Hans Zimmer, James Horner e Alexandre Desplat, voltando a repetir o feito com Newton Howard, num apurar  de uma variante da musicalidade experimentada pelo compositor em 2004 em A Vila, de M. Night Shyamalan. 

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Se há uma excepção que se pode apontar a Uma Vida Escondida é a opção da língua. Interpretado na sua maioria por actores alemães e austríacos, o filme é falado em inglês, enquanto que o alemão, com raras excepções, é utilizado como a língua do “outro”, da agressividade, do insulto e da intolerância, por vezes os dois idiomas partilhando a mesma cena. Se o ideal era ter o filme integralmente na língua nativa, ou, alternativamente, assumindo-se totalmente o inglês, a opção tomada é discutível, especialmente se a encararmos como a língua oficial de um mal universal que, na verdade, apenas circunstancialmente, tem nação.

Mais uma vez, este novo título de Terrence Malick não fará mudar a opinião a quem não se deixe encantar pela sua linguagem e estilo, mesmo voltando a aproximar-se de uma narrativa tradicional. Na sessão a que assisti, mesmo entre opiniões positivas, ouviram-se queixas imediatas das suas quase três horas de duração. E é verdade que nem todos os momentos atingem a mesma qualidade. Mas também é verdade que quando o cinema de Malick se eleva, e não são assim tão poucas vezes, anda muito perto da perfeição poética feita cinema.

1917

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