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1917

1917

Se há algo que se pode prever no rodopio vertiginoso da opinião pública nos tempos em que vivemos, marcados pela explosão das redes sociais que nos trouxe mais ruído e desinformação do que clareza, isto para não falar de uma galopante confusão entre opinião e facto, alimentada pela percepção errada de que o mundo mais prospera quanto mais opiniões se partilhem… Bom, deixem-me recapitular, se há algo que se pode prever nos tempos em que vivemos é que, assim que a Academia das Artes e Ciências de Hollywood anuncia os filmes nomeados para os seus prémios, especialmente aqueles que são apontados à estatueta de Melhor Filme, dá-se início a um processo que começa pelo reconhecimento da confirmação de quem já viu e gostou do filme, seguida de uma espécie de efeito de ricochete que tem tendência a desmistificar as qualidades da obra que, por se ter tornado alvo do interesse público, parece ter passado do seu prazo de validade.

Até ao início de Dezembro do ano passado, 1917 não fazia parte da discussão dos melhores do ano, nem tampouco figurava no horizonte dos títulos ansiados pela comunidade cinéfila. Em pouco mais de dois meses, venceu os Globos de Ouro para Melhor Filme Dramático e Realizador e foi nomeado para nove prémios BAFTA e dez Óscares, tornando-se um forte favorito para sair consagrado destas cerimónias, especialmente depois das vitórias do filme, realizador e director de fotografia, Roger Deakins, nas respectivas guildas americanas. Rapidamente, depois das reacções entusiasmadas, surgiram as críticas que apontam o filme de Sam Mendes como um exercício de estilo impressionante mas vazio, devedor mais à estética e linguagem dos videojogos do que da sétima-arte, funcionando como uma experiência, uma “montanha-russa” de emoções, mas não resistindo ao escrutínio das suas qualidades cinematográficas. Será que estas reacções são válidas? Ou farão apenas parte do obrigatório coro de teatro grego que contraria em uníssono os elogios do público generalizado?

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A história de 1917 resume-se facilmente. A seis de Abril do ano do título, no norte da França devastada pela Primeira Guerra Mundial, dois soldados britânicos destacados na linha da frente, Will Schofield e Tom Blake, são chamados para uma missão urgente. Deverão entregar em mãos uma mensagem ao General McKenzie, na chefia do Segundo Batalhão do Regimento de Devonshire, cancelando um ataque eminente que custará a vida a mil e seiscentos homens, incluindo o irmão de Tom, o tenente Joseph Blake. A particularidade do empreendimento encetado por Sam Mendes, depois dos dois capítulos que realizou para a saga James Bond, terá tido origem na cena de abertura de 007 Spectre, de 2015, um longo plano-sequência que culminava numa espectacular cena de acção. Assim, 1917 comete a proeza aparentemente impossível de ver a sua narrativa decorrer ininterruptamente, no que seria efectivamente um longo plano sem cortes — em rigor, há um momento que invalida esta afirmação, mas, para efeitos de análise e discussão, aceitemos o conceito de uma única cena. Mesmo percebendo que houve manipulação digital para “costurar” as cenas filmadas isoladamente entre si, o efeito é a ilusão de uma longa tomada em que acompanhamos a acção em tempo real filmada integralmente por uma única câmara, dispositivo técnico não totalmente inédito, porém raro — veja-se, ainda na década de quarenta, a experiência de Alfred Hitchcock A Corda, e, já neste milénio, A Arca Russa, filme de 2002 de Alexander Sokurov ou Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância), o premiado filme de 2014 por Alejandro G. Iñárritu.

A arte da edição é intrínseca à linguagem cinéfila. Orson Welles terá mesmo afirmado que “a eloquência do cinema é atingida na sala de montagem”. Por isso, ao abdicar dessa ferramenta, um autor coloca-se em posição de ser facilmente acusado, seja qual for o resultado final, de não  fazer cinema. Mas cinema é também a arte de envolver emocionalmente o espectador na história que conta, de o transportar e lhe oferecer uma experiência sensorial, preferencialmente sem descurar a narrativa — caso se proponha precisamente a contar uma história. Nesse momento, torna-se essencial que a técnica não se sobreponha nem anule a verdade de cada momento narrativo. 1917 começa por deslumbrar pela façanha técnica, e, a espaços, obriga-nos a questionar como terá sido possível a execução do que vemos no ecrã, tal o rigor da recriação das inenarráveis trincheiras e lamacentos campos de batalha polvilhados por soldados e animais mortos e putrefactos. Ultrapassada esta distração, torna-se evidente que o exercício técnico implica também uma abordagem experimental à relação que estabelece com o tempo. Habitualmente, lidamos no cinema com o passar do tempo de uma forma fragmentada e elíptica, porém neste caso somos reféns voluntários e cúmplices de Will e Tom na sua jornada. Felizmente, George MacKay e Dean-Charles Chapman revelam-se dois jovens talentos capazes de carregar às costas a responsabilidade de humanizar as suas personagens, o que intensifica a tensão e o investimento emocional de testemunharmos cada minuto e cada segundo da sua missão.

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Não concordo que 1917 deva algo à linguagem dos videojogos, antes pelo contrário. Penso que a experiência prévia de um público com uma dieta rica em horas passadas a comandar personagens em jogos de tiros na primeira pessoa — a minha tentativa de traduzir first person shooters — contaminou a inevitabilidade de uma câmara que opta por não perder as suas personagens de vista. Se é verdade que, por vezes seguimos Will e Tom por cima do ombro, em outras tantas situações tal não acontece. No melhor momento do filme, o excelente trabalho de fotografia de Roger Deakins atinge o pináculo, dando continuidade a outra ocasião de extraordinária beleza plástica, também em colaboração com Mendes, na recta final de 007: Skyfall. Num cenário de destruição urbana, assistimos a uma cena noturna apenas iluminada por foguetes luminosos e pelo fogo dos incêndios, com a música do compositor Thomas Newman a pontuar de forma dramática uma sequência fantasmagórica no culminar de uma experiência visceral e imersiva que lança a épica e dramática recta final.

Nada disto funcionaria se o elemento humano não funcionasse, no entanto, Sam Mendes, na sua estreia como argumentista, consegue a proeza de construir com a sua parceira de escrita, Krysty Wilson-Cairns, uma história polvilhada de elementos que, para além da grandiosidade das batalhas, dos momentos de tensão e do horror gráfico da consequência e dos despojos da guerra, culminam num desfecho humano e emocional. Talvez, contas-feitas, este seja o seu maior triunfo na criação para o grande-ecrã de uma história inspirada nos relatos do seu avô, Alfred Hubert Mendes, veterano da Grande Guerra. Independentemente de vir a arrecadar Óscares ou BAFTAS, ou sair de mãos a abanar destas cerimónias, 1917 será certamente recordado como um feito técnico e um marco cinéfilo do virar para a nova década.

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