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Da 5 Bloods

Da 5 Bloods

Tal como acontecera com BlacKkKlansman, também Da 5 Bloods deu os primeiros passos como um projecto alheio, neste caso um argumento original de Danny Bilson e Paul De Meo a ser realizado por Oliver Stone, reconfigurado quando chegou às mãos de Spike Lee em nova colaboração com Kevin Willmott. Originalmente chamada The Last Tour, esta história do regresso de veteranos de guerra ao Vietname foi naturalmente alterada para uma perspectiva afro-americana, sendo uma das raras obras cinematográficas, entre as muitas produzidas desde o conflito, a focar-se num grupo de protagonistas negros. Spike Lee, que já em 2015 tinha recorrido ao crowdfunding para financiar Da Sweet Blood of Jesus, não sendo por isso estranho a soluções alternativas ao mercado cinematográfico tradicional, viu aquele que se tornou no seu projecto mais caro de sempre, com orçamento a rondar entre os 25 e os 45 milhões de dólares, ser distribuído mundialmente pelo gigante do streaming Netflix. Dada a indiferença com que os seus filmes da última década foram tratados, esta aposta da Netflix reflecte o renovado apelo de um autor alinhado com o zeitgeist aliado ao sucesso do filme anterior.

Da 5 Bloods conta a história de quatro veteranos americanos da Guerra do Vietname, Paul, Otis, Eddie e Melvin, que voltam ao país asiático para recuperarem os restos mortais do carismático líder de esquadrão Norman, morto em combate numa missão para recuperar a carga de um avião da CIA despenhado: um baú recheado de barras de ouro. Aliada à sua nobre missão, os antigos companheiros de combate planeiam também identificar a localização do baú, escondido por eles na altura, e saquear o ouro com intenções de o dividir entre si, juntando-se a esta demanda David, filho de Paul, preocupado com o estado mental do pai.

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Depois do anúncio de um elenco sonante que não se viria a concretizar, Da 5 Bloods acabou com um grupo de actores não menos impressionante: o grupo de amigos é constituído por Isiah Whitlock Jr., Norm Lewis, Clarke Peters e Delroy Lindo, secundados por Jonathan Majors, Mélanie Thierry, Jean Reno e os repetentes de BlacKkKlansman Paul Walter Hauser e Jasper Pääkkönen, sendo que o malogrado Norman é encarnado pela estrela em ascensão Chadwick Boseman. Apesar de ancorado no presente, Da 5 Bloods recupera através de analepses a memória de Norman em cenas em que os cinco companheiros combateram juntos, incluindo a missão de salvamento do avião com a valiosa carga que levou à sua morte. O estilo exuberante de Spike Lee reflecte-se nesta estrutura fragmentada através de duas opções no mínimo discutíveis. Por um lado, as diferentes proporções do ecrã para sinalizar a diferença temporal. As cenas de guerra foram filmadas em 16 mm na proporção mais quadrada de 1.33:1, para um efeito documental, enquanto que as do presente, filmadas digitalmente, tomam duas proporções distintas: a mais panorâmica 2.39:1 para a generalidade das cenas, e aquela que nos enche os televisores, a de 1.85:1, nas cenas da selva. Não é tanto a utilização em si que é discutível, podendo até afirmar-se que as cenas da selva resultam de um purgatório entre a realidade vivida no passado e o presente, mas sim o facto de Lee chamar a atenção para a transição entre formatos, quebrando com isso a ilusão e anulando qualquer subtileza. Esvaziada de sentido, sobra o virtuosismo estético. A outra opção discutível (e, atenção, uso o termo literalmente, no sentido que convida à leitura e discussão) é o colocar nas analepses os quatro actores na casa dos 60 anos de idade a contracenar com o jovem Chadwick Boseman. Uma visão mais cínica poderá apontar à falta de orçamento para um processo de rejuvenescimento digital ao estilo de O Irlandês, de Martin Scorcese — como, aliás, se pode ver numa foto do grupo. Uma leitura mais generosa pode fazer notar a corajosa opção artística para sublinhar o trauma destas personagens, passados tantos anos ainda a combater a guerra naquelas selvas.

Nitidamente, Spike Lee tem neste filme o seu Coração das Trevas, clássico romance de Joseph Conrad, ou, se preferirmos, o seu Apocalypse Now, a celebrada adaptação livre por Francis Ford Coppola situada precisamente no Vietname, obra referenciada descaradamente em mais do que uma ocasião. Outro filme a que Lee pisca o olho é O Tesouro da Sierra Madre, realizado em 1948 por John Huston e protagonizado por Humphrey Bogart, em que uma corrida ao ouro enegrece o coração dos homens que o perseguem. Não obstante, este é um inconfundível filme de Spike Lee, servindo como objecto histórico e didático, tanto na recriação fictícia de eventos como no pontual uso de imagens de arquivo, algumas delas chocantes, e referências a personalidades e acontecimentos reais, com maior incidência na experiência afro-americana, obviamente. Dois exemplos emblemáticos são: um momento de grande tensão em que, para efeitos motivacionais, Paul aponta a David que este (tal como o realizador) estudou no Morehouse College, a mesma universidade frequentada por Edwin C. Moses, atleta vencedor de duas medalhas olímpicas em 1976, estabelecendo o recorde de maior margem de vitória na história da competição; e a recriação das transmissões radiofónicas de Hanoi Hannah, uma apresentadora de rádio norte-vietnamita que se dirigia em inglês aos soldados Americanos no sentido de os desmoralizar de lutar, endereçando-se aos soldados negros para anunciar o assassinato de Martin Luther King ou revelar as estatísticas desproporcionadas de soldados afro-americanos no total do contingente do seu país.

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Da 5 Bloods lida com o trauma da guerra, especialmente na figura de Paul, interpretação maior que a vida de Delroy Lindo, inconformado, assombrado por fantasmas do passado e no limite da sanidade, como comprovado ao revelar ser apoiante de Trump, para incredulidade dos demais. Este trauma será exacerbado pela ganância e paranóia acicatadas pelo ouro e, ajudado pelas minas que ainda populam a selva, bem como pela intervenção de guerrilheiros locais, o conflito e o confronto armado voltam a fazer parte da realidade do grupo, que tem de acabar a lutar pela sobrevivência, apesar das cisões entretanto ocorridas no seu interior. Porque não são apenas os soldados americanos que carregam consigo os fantasmas do passado, mas também a terra e as pessoas deixadas para trás. Só é pena que, num filme de um cineasta que sente na pele a sua condição racial e que luta constantemente pela igualdade através da sua obra, o retrato dos antagonistas vietnamitas acabe por ser tão caricatural como em qualquer filme do Rambo, isto apesar da anterior e explícita referência desdenhosa e trocista a estes filmes. Nas suas longas duas horas e meia, Da 5 Bloods navega ao som das músicas de Marvin Gaye rio acima pelas lamacentas águas em direcção a um final trágico, fruto, muitas décadas depois, dos efeitos de uma guerra inútil em quem, não tendo forma de se livrar, foi recrutado para servir de carne para canhão. A alegria dos reencontros no início da narrativa vai sendo substituída pelo peso da herança deste grupo de homens, a nobreza da recuperação do corpo de Norman servindo na verdade a necessidade de expiação e reconciliação com o passado. A alturas tantas é mencionado que os 5 Bloods não morrem, reproduzem-se. É este o consolo do final, a ilusão redentora de se contribuir para um futuro melhor, seja através de descendentes ou de generosas contribuições para causas nobres, fruto dos ganhos do ouro.

Por um lado, depois de BlacKkKlansman, Da 5 Bloods parece um passo atrás na carreira de Spike Lee. Na verdade, penso ser o reflexo perfeito do seu autor. Ambicioso, ansioso, zangado, interventivo, polémico, reacionário, um pouco desajeitado, mas, no fundo, com o coração no sítio certo.

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