Nosferatu antes de Robert Eggers
Este é um texto revisto de parte do guião do episódio 79 do Segundo Take, originalmente publicado a 23 de Abril de 2017.
Nosferatu, o Vampiro (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, F. W. Murnau, 1922)
Em 1922, F.W. Murnau realizou Nosferatu, o Vampiro, uma das mais célebres adaptações cinematográficas de Drácula, o romance de 1897 escrito por Bram Stoker. Nosferatu é, também, um dos títulos frequentemente apontados quando se fala do expressionismo no cinema alemão, neste caso na vertente do género de terror.
Curiosamente, esta foi uma adaptação não autorizada, pois o estúdio alemão que a produziu, Prana Film, não conseguiu a obtenção dos direitos necessários para a produção. Ainda assim encomendou ao escritor Henrik Galeen a tarefa de escrever um argumento com base no livro, alterando o nome das personagens e alguns acontecimentos. A ação é deslocada de Londres, em 1890, para a fictícia cidade alemã de Wisborg, em 1838. O Conde Drácula passa a denominar-se Conde Orlok, Jonathan Harker transforma-se em Thomas Hutter e Mina encontra a sua homóloga em Ellen. Muitas das personagens secundárias são omitidas, incluindo o professor Van Helsing.
A história arranca quando Thomas viaja até à Transilvânia para auxiliar o Conde Orlok numa transação imobiliária. Quando Orlok vê uma fotografia de Ellen, a mulher de Thomas, apaixona-se perdidamente por ela e viaja ao seu encontro, levando o terror à sua passagem. A narrativa é bastante próxima do texto original, com derivações na reta final, não obstante algumas alterações significativas, como por exemplo, Orlok não transformar as suas vítimas em vampiros, matando-as sob o alibi da uma suposta praga assassina. No entanto, a alteração mais significativa, em termos da definição do mito para as gerações futuras, foi o poder destrutivo que a luz do sol exerce sobre o vampiro, quando no texto de Stoker apenas o enfraquecia.
Max Schreck numa cena de Nosferatu, o Vampiro (1922)
Além de muitas outras qualidades deste influente filme mudo, o elemento decisivo para o sucesso de Nosferatu é a caracterização do Conde Orlok pelo ator Max Schreck. Apesar de se desviar da descrição do conde da obra de Stoker, Orlok é uma das mais perenes e reconhecidas imagens da mitologia vampírica. Ajudado pelo sentido visual do seu realizador, que compõe autênticos quadros vivos em enquadramentos de inegável beleza estética, Schreck é tão verosímil e ameaçador na encarnação da sua personagem, que se criou o mito em que o próprio actor seria um verdadeiro vampiro — aliás, este mito serviu de base a A Sombra do Vampiro, filme de 2000 realizado por E. Elias Merhige que contou com John Malkovich e Willem Dafoe nos principais papéis.
Entretanto, os herdeiros de Bram Stoker moveram um processo contra a adaptação ilegítima da Prana Film, e o tribunal, dando-lhes razão, mandou destruir todas as cópias de Nosferatu, incluindo os negativos. Felizmente, algumas cópias sobreviveram, e o filme veio a ser considerado uma obra-prima altamente influente para o mito do vampiro, para o género de terror e para o cinema em geral.
Nosferatu, o Fantasma da Noite (Nosferatu - Phantom der Nacht, Werner Herzog, 1979)
As influências de Nosferatu são de tal magnitude que Werner Herzog, um dos mais aventureiros cineastas alemães da sua geração, afirmou ser aquele o mais importante filme alemão de sempre e, em 1979, produziu um remake do filme mudo, Nosferatu, o Fantasma da Noite, naquela que seria a sua segunda colaboração com o ator Klaus Kinski, com quem manteve uma atribulada relação ao longo de cinco títulos. Kinski, apesar do seu conhecido e difícil temperamento, aceitou reproduzir, através de um aturado processo de maquilhagem, o visual original de Schrek.
Curiosamente, por esta altura, o romance de Bram Stoker já pertencia ao domínio público, e Herzog, apesar de seguir a estrutura do filme de Murnau, recupera os nomes originais das personagens, transformando Orlok de volta no Conde Drácula, Thomas em Jonathan, interpretado por Bruno Ganz, e Ellen em Lucy, Isabelle Adjani no principal papel feminino, aqui numa troca com Mina que ocorre frequentemente nas adaptações desta história.
Klaus Kinski e Isabelle Adjani numa cena de Nosferatu, o Fantasma da Noite (1979)
A década de setenta tinha assistido a um ressurgimento do interesse do público pelo mito do Drácula, e só em 1979 foram produzidos outros quatro filmes para cinema sobre o mesmo tema: Drácula (Dracula, John Badham), Amor à Primeira Dentada (Love at First Bite, Stan Dragoti), Nocturna (Harry Hurwitz) e O Conde Drácula na Baviera (Graf Dracula in Oberbayern, Carl Schenkel). O que talvez explique uma das mais insólitas curiosidades sobre Nosferatu, o Fantasma da Noite. A pedido do distribuidor americano, Herzog filmou duas versões do filme: uma falada em alemão, outra em inglês. Mas ao invés de filmar numa língua e simplesmente dobrar na outra, filmou as mesmas cenas duas vezes, uma em cada idioma. Assim, existem duas versões distintas, não só na língua falada, mas nas subtilezas e ritmos das interpretações. Herzog, entretanto, já confessou que considera a versão alemã a mais autêntica.
Com o contributo da música do grupo alemão Popol Vuh, de trechos de composições de Richard Wagner e de uma canção tradicional georgiana, Herzog oferece uma leitura de Nosferatu contemplativa e onírica. Com imagens de rara beleza, e um óbvio aproveitamento dos locais reais de filmagem, o realizador alemão moderniza a linguagem do filme de Murnau sem, no entanto, perder o seu lado teatral, de gestos grandiosos.
Reforçando o elemento do terror introduzido na cidade de Wismar, o argumento do próprio realizador deriva do cânone do filme mudo na sua reta final, explorando a trágica solidão de Drácula, aprofundando a caracterização de Lucy, que toma o seu destino nas suas próprias mãos, e alterando o desfecho para Jonathan, numa reviravolta inesperada em relação ao filme original. Apesar de não ter atingido a importância do filme em que se inspira, nem tentado reproduzir a sua estética, Nosferatu, o Fantasma da Noite expande a narrativa e os temas da obra de Murnau de forma satisfatória, contrariando o estigma da utilidade ou relevância que se abate sobre muitos remakes.
Lily-Rose Depp numa cena de Nosferatu (2024).
Resta saber se esta opinião se mantém depois de ver o novo remake de Robert Eggers.