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Episódio #17 - Os Oito Odiados / Veio do Outro Mundo

Episódio #17 - Os Oito Odiados / Veio do Outro Mundo

Quentin Tarantino é um entusiasta do cinema, tal como o conhecíamos. Aquele cinema que está à beira da extinção. O que era filmado e projectado em celulóide, em formatos panorâmicos, onde o próprio acto de ver cinema era um evento. De tal forma que a sua própria estética é ditada por esta paixão. Desde a reprodução da experiência Grindhouse há uns anos, em parceria com Robert Rodriguez, até ao roadshow em que exibiu em alguns cinemas Os Oito Odiados no raro formato de 70mm com que o fotografou, abertura, intervalo e libreto incluídos, existe em Tarantino uma vontade de fazer perdurar uma visão nostálgica e analógica do acto de ver e sentir a 7ª arte.

Infelizmente nem todos temos o privilégio de experimentar o roadshow e, ao invés, temos de nos contentar com uma versão ligeiramente mais curta do filme. No final de contas o que sobra? Será Os Oito Odiados uma entrada significativa no cânone Tarantinesco? E o que significa isso afinal?

Algum tempo depois da Guerra Civil Americana oito estranhos procuram refúgio de uma tempestade de neve numa paragem de diligências. Entre eles encontram-se John Ruth, um caçador de recompensas e Daisy Domergue, a sua prezada prisioneira. Obrigados a partilhar a estadia com um conjunto de suspeitos personagens Ruth está determinado a não deixar escapar o seu prémio a qualquer custo.

Tarantino junta algumas caras novas a um punhado dos seus habituais colaboradores num ensemble encabeçado por Samuel L. Jackson, Kurt Russell e Jennifer Jason Leigh para mais uma exploração violenta da arte de contar histórias. Apesar de acusações de vacuidade, misoginia, racismo ou sensibilidade adolescente, na suposta glamorização que faz da violência, Tarantino mantém-se fiel à sua linguagem e, se é verdade que Os Oito Odiados demonstra uma preocupação com o estado das coisas na América actual, incluindo a analogia do cenário onde se passa a maioria da acção como um caldeirão de tensões raciais onde o horror da violência se sobrepõe a qualquer questão de género ou raça, a verdade é que o seu engenho está na forma como nos narra a história. 

Os Oito Odiados é mais um conto confiante do um dos melhores contadores de histórias actuais, subvertendo o uso típico do ecrã panorâmico e do formato de 70mm, usados maioritariamente em paisagens e vistas, para filmar uma peça de câmara onde, através da atenção aos detalhes e pormenores, manipula o espectador a seu bel prazer. Tarantino leva o seu tempo na construção das situações e vai revelando o suficiente das personagens para nos provocar milimetricamente as reacções desejadas. E quando pensamos saber exactamente para onde o filme se dirige tira-nos o tapete debaixo dos pés e, ao fim de oito filmes, se contarmos os dois Kill Bill como um único filme partido ao meio, ainda nos consegue surpreender.

Além da habitual utilização de música existente previamente, Os Oito Odiados beneficia, pela primeira vez num filme do Tarantino, de música original com um conjunto assombroso de composições do aclamado compositor Ennio Morricone,  interrompendo a sua reforma após insistência daquele. Algures entre a música de western e de filme de terror tem no seu tema central uma gravidade bombástica que assenta como uma luva no tom do filme, complementado por um conjunto de variações que sublinham a tensão inerente ao registo de paranóia e desconfiança entra as várias personagens.

Tal como Sacanas Sem Lei abordava o poder da narrativa cinematográfica também Os Oito Odiados assenta na importância da narrativa oral, tanto como expressão equivalente da verdade e da mentira como da sua capacidade manipuladora independentemente da sua natureza. As histórias têm o poder de nos suscitar emoções ou mesmo ideias, independentemente de serem verdadeiras ou falsas. Uma história inventada pode ser fonte de inspiração, mesmo que saibamos ser ficção. Da mesma forma uma verdade pode ser alvo de desconfiança pois é tão, ou tão pouco, poderosa como uma mentira. Há inclusivamente alguma ironia e humor negro na forma como Tarantino desconstrói um momento de leitura de uma carta que, noutro filme qualquer seria utilizado como o momento da moral ou mensagem do filme. Aqui não há moral ou mensagem. Apesar de algumas reflexões sobre a natureza da justiça todas as personagens têm a sua agenda e pelo menos um objectivo muito claro: auto-preservação a qualquer custo.

Os Oito Odiados oferece aos seus actores uma oportunidade de ouro. Interpretar personagens que, elas próprias, estão em constante acto performativo, escondendo-se por detrás de uma máscara de pretensão no sentido de se adaptarem em função das necessidades de cada momento. Destaco três interpretações de um conjunto bastante sólido: Walton Goggins, no papel de Chris Mannix, uma personagem abrasiva, faladora, mas algo ingénua e com o maior grau de flutuação ao longo do desenrolar da narrativa; Samuel L. Jackson, no papel do Major Marquis Warren, que é peça central da trama, alvo das atenções das restantes personagens pela cor da sua pele que, apesar da impressão heróica que parece causar ao início, irá revelar uma faceta obscura e sádica que reverte por completo a relação do espectador com esta personagem; por último Jennifer Jason Leigh que, como Daisy Domergue, rouba todas as cenas em que intervém, além de ser uma presença magnética até quando está apenas a reagir ao que se passa à sua volta. Um tour-de-force desta actriz num papel que Tarantino descreveu, para quem conhece a história da Família Manson, como “a Susan Atkins do Oeste Selvagem”.

Os Oito Odiados é puro Tarantino. É indulgente, e até arrogante, no melhor sentido da palavra. É o resultado de um autor em plena forma e no auge das suas capacidades. Quem não gosta não vai passar a gostar. Para quem é fã há aqui muitas razões para uma óptima experiência no escuro do cinema.


Nesta edição nostálgica pelos dias do VHS vou falar de Veio do Outro Mundo, The Thing no original, um clássico do terror de ficção-científica de 1982 realizado por John Carpenter, com Kurt Russell no principal papel. É baseado na novela Who Goes There? de John W. Campbell, Jr. que tinha sido adaptada ao cinema em 1951 por Howard Hawks e Christian Nyby em A Ameaça. Não é segredo que desde tenra idade sou fã de John Carpenter e Veio do Outro Mundo é um dos títulos obrigatórios deste autor que merece ser revisitado em conjunto com Os Oito Odiados pelos inúmeros pontos de contacto que estes filmes partilham.

Em primeiro lugar Veio do Outro Mundo foi apontado explicitamente por Tarantino como uma das influências e inspirações para o seu mais recente filme. Além de contar com Kurt Russell num dos principais papéis ambos os filmes têm como cenário locais dominados pelo gelo, verdadeiro protagonista que condiciona a mobilidade dos personagens, encurralando-os e sublimando a paranóia e desconfiança entre eles. São filmes pessimistas e niilistas onde uma ameaça, interna num filme e externa no outro, revela a verdadeira personalidade dos seus protagonistas numa luta desesperada pela sobrevivência. Outro elemento em comum é a banda sonora original da autoria de Ennio Morricone. Em ambos os casos Morricone aparece como compositor de forma inesperada na filmografia dos seus realizadores. Tarantino costuma construir as suas bandas sonoras através dum processo de corte e costura de música previamente existente, enquanto que Carpenter costuma compor a sua própria música. Além disso Tarantino usa em Os Oito Odiados três faixas que Morricone tinha composto para o filme de Carpenter mas que este decidiu não utilizar: Eternity, Bestiality e Despair.

Carpenter considera Veio do Outro Mundo como a primeira parte da sua Trilogia do Apocalipse, seguido por Príncipe das Trevas e A Bíblia de Satanás. Embora não relacionados narrativamente cada um contempla um cenário potencialmente apocalíptico. O filme conta a história de uma forma de vida extraterrestre e parasítica que assimila outros organismos imitando-os. Esta infiltra uma estação de investigação na Antártida tomando a aparência dos investigadores que absorve, gerando desconfiança e paranóia entre eles. Um grupo encurralado em situações extremas é um mote recorrente nos filmes de Carpenter que aqui subverte o template clássico do filme de cowboys encurralados transpondo uma ameaça inicialmente externa para o seio do grupo onde qualquer um pode ser o inimigo mortífero disfarçado. Também em comum com o mais recente filme de Tarantino é o uso do ecrã panorâmico em cenas de interior com uma composição deliberada e cuidada no sentido de dar a conhecer ao espectador pormenores e detalhes vitais ao desenrolar da acção que as próprias personagens envolvidas na cena não aprendem.

Carpenter consegue um feito raro com este filme: o equilíbrio perfeito entre a tensão, a desconfiança e o terror sugerido com o horror gráfico absolutamente grotesco. Os efeitos especiais práticos são de outra era mas mantêm a vitalidade e ainda me conseguiram surpreender em situações das quais não tinha total recordação. A cada minuto que passa corremos o risco de assistir a transformações cada vez mais inesperadas e violentas. Invejo quem seja fã de emoções fortes e ainda não tenha visto este filme porque nunca mais o poderei ver pela primeira vez. Conhecendo por esta altura Veio do Outro Mundo relativamente bem tive o privilégio de o poder rever sem ser por entre os dedos das mãos e consegui apreciar o elemento basilar para o sucesso deste filme: o argumento de Bill Lancaster é exímio de economia e eficiência na caracterização das personagens e progressão da acção. Na fronteira da caricatura e do estereótipo cada personagem é, no entanto, distinta e provida de personalidade própria. Conseguimos perceber quem é quem e, da mesma forma, a gestão espacial permite-nos saber onde estamos a cada momento, com o mistério de quem poderá estar, ou não, infectado a ser claramente e consistentemente gerido pelos autores.

Finalmente uma palavra para Kurt Russell que, a par de Snake Plissken de Nova Iorque, 1997, tem aqui a colaboração com Carpenter que definiu a sua imagem de cowboy moderno e não alinhado que mais tarde seria satirizado pelos próprios em As Aventuras de Jack Burton, Nas Garras do Mandarim. Confiante, independente, sarcástico, com carisma de líder, justo mas duro quando a situação assim obriga, R.J. MacReady é também um elemento fundamental e facilmente identificável deste filme.

Veio do Outro Mundo, tal como Blade Runner - Perigo Iminente estreado no mesmo dia de 1982, foi um fracasso de bilheteira que, com o tempo, se tornou um clássico de culto. Nunca é tarde para se descobrir uma obra-prima intemporal.

Não se esqueça de rebobinar.

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