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O erotismo do pára-choques amolgado

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Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 24 de outubro de 2016 com o título [Patinho Feio] Crash (1996) e pode ser lido na íntegra aqui.

Em Outubro de 1996, dez anos depois de A Mosca, estreia em Portugal o novo filme de David Cronenberg: Crash. Estava a iniciar o 3º ano do meu curso de 5, e era um jovem a caminhar para adulto quando sou confrontado com esta obra que se veio a revelar seminal na minha relação com o cinema. Os dez anos que decorreram entre A Mosca e Crash são, ainda hoje, uma caixa negra para mim no que respeita à filmografia de Cronenberg. Nunca vi Irmãos Inseparáveis nem M Butterfly, enquanto que O Festim Nu, por sua vez, foi uma experiência algo impenetrável nas várias ocasiões que o vi. Por isso aponto Crash como o título que, em 1996, consolidou definitivamente Cronenberg como um nome a ter em conta. Aqui estava um filme com a capacidade de me excitar e perturbar em igual medida. Lembro-me de ficar fisicamente abalado da primeira vez que o vi, no saudoso cinema King, em Lisboa. A frontalidade da abordagem ao sexo era rara, refrescante e visceral. O inconformismo perante comportamentos e crenças normativas tinham o potencial para este ser um veículo, passo a expressão, que iria quebrar tabus. Enfim, repito que era jovem na altura, sonhador e iludido. Crash foi recebido com o manto da polémica que cobre qualquer tentativa séria de contornar a reinante hipocrisia das primitivas crenças sociais e religiosas de normalização e controlo. A carne é para tapar e o sexo, força criadora de vida e única razão para a existência, não deverá nem sequer ser mencionado, sob pena de se cometer pecado capital.

Em 1987 vi no cinema Miramar, em Cascais, O Império do Sol, de Steven Spielberg. Como jovem impressionável de 10 anos que era considerei-o imediatamente um dos meus filmes favoritos, comprando logo o livro que lhe tinha dado origem. Com traços autobiográficos, grandemente embelezados, soube-o mais tarde, contava a história de cativeiro do autor, J.G. Ballard durante a Segunda Guerra Mundial. Mas o livro provou ser demasiado para a minha imatura mente e, até hoje, nunca o acabei. Quando me apercebi que Crash era um livro de J.G. Ballard fiquei algo confuso. Os dois universos não pareciam combinar. O que não percebia na altura é que O Império do Sol era uma anomalia na carreira deste escritor britânico associado à nova vaga de ficção-científica com as suas obras apocalípticas do princípio de carreira. Em Crash, escrito em 1973, Ballard, que dá o seu nome ao narrador, escreve sobre uma forma de parafilia que envolve fetichismo com acidentes de automóvel onde os seus protagonistas se excitam sexualmente simulando e participando em acidentes rodoviários. Tal como a adaptação de Cronenberg viria a ser apelidada, também o livro de Ballard foi considerado polémico.

O produtor de televisão James Ballard (James Spader) e sua esposa, Catherine (Deborah Kara Unger), têm um casamento aberto. O casal envolve-se em várias infidelidades mas, entre eles, têm relações sexuais sem entusiasmo. A sua excitação é conseguida através da discussão de detalhes íntimos do seu sexo extraconjugal. Uma noite, ao conduzir para casa, Ballard colide frontalmente com outro veículo, matando o passageiro do sexo masculino. Enquanto recupera no hospital Ballard envolve-se com a Dra. Helen Remington (Holly Hunter), esposa do passageiro morto, e com Gabrielle (Rosanna Arquette), uma atraente mulher com um aparelho ortodôntico nas pernas, ambas seguidoras de Vaughan (Elias Koteas), um fetichista de acidentes de automóveis que estuda vídeos de segurança rodoviária, fotografa cenas de acidentes e recria colisões famosas, tais como a que vitimou James Dean.

O genérico de Crash tem uma angular e assombrada música de Howard Shore que estabelece perfeitamente o tom do que se segue. A ansiedade da alienação da vida moderna permeia o filme e assombra as suas personagens. Cronenberg filma a cidade como um labirinto de cimento que anula a empatia e o contacto humano. Um acidente funciona como um choque, tanto literal como metafórico que abana o marasmo das vidas das personagens e as coloca em contacto com o seu lado mais primitivo e carnal. O sexo é partilha e, neste contexto, a derradeira forma de comunhão. Tal como em Videodrome - Experiência Alucinante, também aqui se professa uma nova ordem onde a carne se funde com a chapa numa evolução natural do homem com o meio-ambiente e com as máquinas que o rodeiam. O olhar de Cronenberg é clínico e observador, nunca julgando, e sem nunca se coibir de servir a história. A narrativa é circular, como que em circuito fechado, cíclica e inescapável. O sexo é quase explícito sem nunca ser pornográfico e, mais do que colorir ou complementar a história, encerra ele mesmo todo o seu sentido. É por isso que, passados uns meses, quem teve o azar de alugar o filme numa versão censurada - sim, estávamos em 1996 e Crash foi censurado no mercado de aluguer - viu um filme que não fazia qualquer tipo de sentido. Retirar o sexo de Crash é como retirar as canções de Música no Coração.

Ainda hoje, e polémicas à parte, Crash é um filme pouco consensual. Três anos mais tarde Cronenberg realizou eXistenZ, muito popular, e uma síntese temática da sua filmografia e tem construído de forma consistente um corpo de trabalho cerebral, adulto e violento. E, infelizmente, apesar da globalização e facilidade do acesso à informação, estamos cada vez mais preguiçosos, conformados e imaturos pelo que David Cronenberg nunca será um nome popular junto do grande público. Na minha opinião, apesar alguns filmes por ver e outros mais impenetráveis na sua filmografia, considero-o um cineasta de exceção e Crash uma obra-prima.

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