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Hitchcock em acto contínuo

Hitchcock em acto contínuo

Este texto foi publicado originalmente na Take Cinema Magazine dia 18 de agosto de 2016 com o título [Patinho Feio] A Corda (1948) e pode ser lido na íntegra aqui.

Foi com A Corda que aprendi o conceito de plano-sequência, pois foi filmado como se decorresse inteiramente num único plano, ou seja, uma única cena que se desenrola em tempo real, sem qualquer corte. Na realidade isso era impossível de concretizar tecnicamente em 1948 pois cada bonina de filme apenas permitia a gravação de 10 minutos de cada vez, aproximadamente. A continuidade foi conseguida através de cortes invisíveis quando alguém, ou alguma coisa, preenche o ecrã, momento que Hitchcock aproveita para interromper a gravação, retomando-a no mesmo local exacto, conseguindo a ilusão. Uma visualização atenta permite perceber estas costuras, bem como outros cortes efectivos que, na realidade, também existem no filme. Estes acontecem sensivelmente a cada 20 minutos, nos pontos onde os projecionistas das exibições nas salas de cinema tinham de mudar as bobines, que correspondiam, cada uma delas, a duas das câmaras de filmar.

Esta técnica apresentava, à altura, uma multitude de desafios, além das durações limitadas das bobines. A começar pelo desafio aos actores de interpretarem as suas cenas em takes ininterruptos de 10 minutos, quase como no teatro, mas com a desvantagem de ter uma equipa técnica a mover peças de cenário e uma câmara gigantesca à sua volta, visto que este foi o primeiro filme de Hitchcock em Technicolor e as câmaras deste formato tinham dimensões impensáveis hoje em dia, o que dificultava incomensuravelmente o processo em comparação com o mesmo tipo de experiências actuais.

A Corda narra a história de Brandon e Philip, dois amigos que, influenciados pela filosofia do seu professor Ruppert Cadell, interpretado pela estrela do filme, James Stewart, decidem por em prática a noção de que existem pessoas superiores, com autoridade moral sobre os outros, matando o amigo de ambos, David, apenas porque se sentem no direito de o fazer. Para completar a experiência, e a trip de ego, dão uma festa onde convidam os pais e noiva da vítima, um amigo em comum, e o próprio professor Ruppert, servindo-lhes o jantar sobre a arca onde guardaram o corpo. Além da exploração das questões morais inerentes ao acto cometido pelos amigos criminosos há um exercício de suspense em relação à possibilidade da sua descoberta. Ao mostrar o crime na cena de abertura Hitchcock retira qualquer suspense sobre a ocorrência do crime e coloca o ênfase no jogo do gato e do rato que se segue e na possível revelação do corpo.

Arthur Laurents, adaptando um tratamento de Hume Cronyn, também actor e futuro protagonista de Cocoon – A Aventura dos Corais Perdidos (mas isso fica para outra altura), ficou insatisfeito com algumas das opções do realizador, nomeadamente a referida revelação inicial do crime. Na sua opinião a tensão deveria focar-se na dúvida sobre a existência do crime. Laurents também não gostou da diluição do subtexto homossexual entre Brandon e Philip presente na peça original e na sua versão do argumento. Relembro que estávamos em 1948 e, mesmo no set de filmagens, ninguém ousava referir-se à homossexualidade do texto pelo nome, referindo-se, em alternativa, “àquilo”. Laurents acredita que o casting de James Stewart também ajudou a retirar qualquer insinuação de um envolvimento passado entre Ruppert e um dos seus alunos dado o seu perfil de menino de coro bem comportado e 100% americano. Outro assunto tabu entre a equipa de filmagem de A Corda era o facto de que a peça original se tinha baseado num evento real, o assassinato de Bobby Franks, de 14 anos, em 1924 na Universidade de Chicago, pelos estudantes Nathan Leopold e Richard Loeb.

É curioso que o mestre do suspense e da linguagem cinematográfica quisesse ter feito uma peça teatral filmada. Paul Duncan, no livro Alfred Hitchcock – A Filmografia Completa , afirma “A verdade é que a técnica utilizada para fazer A Corda só contribuiu para lhe roubar a vivacidade. O filme acabou por ser prejudicado pela indefinição da relação entre as personagens. É óbvio para um público moderno que os assassinos são homossexuais que vivem juntos, mas o filme apresenta-os mais como bons amigos devido à censura. Assim, a atitude agressiva de Brandon para com Philip, que é mais fraco mas que foi o autor do estrangulamento, não tem uma base emocional”. Já Kim Newman, na sua análise para o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer escreve “A técnica intromete-se menos do que seria de esperar no fluir da acção, permitindo que Stewart e Dall se digladiem num combate monumental entre a rectitude moral e o assassinato”. Não sendo um dos seus melhores filmes é, no entanto, um filme imprescindível para qualquer fã de Hitchcock, em particular, e da vontade de ver o cinema a expandir as suas fronteiras, em geral.

Não percam também as minhas divagações sobre este filme no episódio #39 do podcast Segundo Take.

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